Escritoras do Agora: Camila Martins
Do isolamento em São Paulo ao encantos da natureza amazônica, a autora paulistana fala sobre todos os caminhos que a levaram para a escrita de "Três segundos de frente para o abismo"
Foi preciso ler “Três segundos de frente para o abismo”(Editora Tamuatá) duas vezes seguidas para me certificar que a empolgação não estava relacionada com a minha relação pessoal com a autora. Tenho o privilégio de chamar Camila Martins de amiga desde 2010. Quando ela me enviou uma prova do livro, foi como se eu tivesse embarcado para uma viagem com o corpo atado por maldições definições. Os músculos presos, tensos, em estado de alerta - por não saber o destino e porque é assim que se vive como mulher. Com medo. E a cada verso, a cada rito, a cada página escrita pela Camila, as ataduras foram sendo retiradas. Algumas doeram bastante, outras, eu mesma tinha enrolado no pescoço, na boca, nas mãos. E então aterrissei livre, mas ainda perdida por ocupar uma terra estrangeira. Camila faz a gente sentir na pele, nas ancas e na língua os novos voos. Pra mim, esse é um livro sobre ruptura e descoberta. Sobre aprender a ser livre para buscar.
Nesta última conversa do ano no Escritoras do Agora, a poeta Camila Martins detalha todo o processo de escrita do seu primeiro livro. E ao final, compartilha sua listinha de obras escritas por mulheres. Aprecie a paisagem!
Seu processo de escrita começou durante a pandemia. Quais sentimentos permearam esse início?
Camila Martins: Escrevo ou enlouqueço. Essa foi minha maior motivação. Há um bom tempo sentia a necessidade de escrever, mas acabava colocando outras coisas na frente. Quando me vi isolada em casa, sem a perspectiva do mundo voltar ao "normal", percebi que a escrita era a ferramenta para me ajudar a passar por toda essa situação. A princípio, minha intenção era escrever um romance, nunca imaginei que a poesia ia me atravessar e sair de uma maneira tão orgânica.
Habitar esse corpo mulher em uma sociedade ainda comandada por homens me faz querer falar de experiências e resistências com outras mulheres, buscar interlocuções e identificações.
Você fez uma residência artística, a Campo de Heliantos. Como essa experiência impactou na criação do "Três segundos de frente para o abismo"?
CM: Campo de Heliantos é uma residência literária criada pela escritora Graziela Brum, em Alter do Chão, no Pará. Quando me candidatei para ir pra lá, no começo de 2021, ainda não sabia que estava escrevendo um livro de poesia. Quem me ajudou a reconhecer isso foi a Grazi. Cheguei em Campo de Heliantos, em novembro de 2021, com 70% do livro escrito, o objetivo era terminá-lo durante a residência. E essa vivência foi fundamental para o "Três segundos de frente para o abismo", sinto que foi no convívio com a Grazi, com o Mai (um indígena que é parceiro dela na residência), com as outras escritoras, com o Carimbó, com o Tapajós, com a Samaúma e com os moradores da Vila de Alter do Chão que o livro ganhou alma, brilho e novas imagens. Foi lá também que conheci pessoalmente Stefanni Marion, poeta e criador da Editora Tamuatá, que colocou o "Três segundos" no mundo.
Seu livro dialoga diretamente com as mulheres. Dores, fracassos, vivências. Foi uma decisão consciente?
CM: Antes de ser escritora, sou socióloga e jornalista. Pesquiso feminismo desde os meus 18 anos e, inevitavelmente, isso se reflete na construção da minha subjetividade e transborda no que escrevo. Não sei se foi uma decisão consciente, mas sinto que não seria possível fazer de outra maneira. Habitar esse corpo mulher em uma sociedade ainda comandada por homens me faz querer falar de experiências e resistências com outras mulheres, buscar interlocuções e identificações.
Agora sobre o formato: o livro tem três divisões. É também uma maneira de conduzir o leitor?
CM: O livro é dividido em três segundos e existe uma narrativa que se desenvolve entre eles. A partir do momento que o livro se constituiu como projeto, entendi que a sequência dos poemas era fundamental para a história que eu queria contar. Claro que você pode abrir em uma página aleatória e ler o poema que está lá, mas acredito que ao seguir a narrativa proposta, que parte do poema "AUTORA" e termina em "LIVRO", é possível se conectar com toda a travessia do processo criativo. A passagem de um segundo para o outro mostra uma intimidade com a linguagem que vai se desenvolvendo, a saída da cidade para a floresta, o salto da iminência para a realização do desejo.
Um livro sempre carrega um pedaço de quem escreve. O quanto das suas vivências pessoais permeiam os poemas?
CM: Quando achei que estava escrevendo um romance, a autoficção era o gênero desejado. Essa relação mais íntima com a escrita já partiu do desejo de usar vivências e memórias como matéria-prima para a criação. Então, posso dizer que "Três segundos de frente para o abismo" carrega muito de mim. O poema que dá nome ao livro, por exemplo, foi escrito depois de sofrer um acidente de carro. Na tentativa de encontrar um lugar, diria que é uma poesia confessional.
No lançamento do livro, você contou que nunca foi uma superleitora de poesia.
CM: Pois é. Antes de escrever o "Três segundos" eu tinha só duas obras de poesia em casa. Sinto que comecei a entender melhor a escrita poética a partir do processo de edição, feito em parceria com o Stefanni Marion e com a Carolina Pinheiro, escritora e artista que fez a capa e o projeto gráfico do livro. Eles me ensinaram sobre como a poesia é experimentação de forma, linguagem e criação de imagens. Outro fator importante para o desenvolvimento da minha relação com a poesia é ter sido selecionada para Clipe Poesia (Curso Livre de Preparação de Escritores), oferecido pela Casa das Rosas. Estou saindo de lá com outro livro escrito, que pretendo começar o processo de edição em janeiro.
A passagem de um segundo para o outro mostra uma intimidade com a linguagem que vai se desenvolvendo, a saída da cidade para a floresta, o salto da iminência para a realização do desejo.
Você lançou recentemente um novo projeto, o IRA. Poderia contar um pouco sobre ele?
CM: "IRA" é uma plaquete (uma publicação menor que um livro, com caráter quase artesanal), feita em parceria com mais duas poetas, a Flora Miguel e a Priscila Kerche. Ela foi selecionada para fazer parte da terceira coleção de plaquetes da Editora Primata. São nove poemas, três de cada uma, inspirados pelo o que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han entende por esse sentimento - uma força capaz de promover rupturas e transformações em estados já estabelecidos. Nessa plaquete a escrita é compreendida como ferramenta de materialização desse sentimento ao abordar nos poemas violências sistemáticas sofridas pelas mulheres.
LISTINHA DE INDICAÇÕES
Quais são os seus 3 livros preferidos da vida escritos por mulheres?
"A chave de casa", Tatiana Salem Levy
"Garota, Mulher, Outras", Bernardine Evaristo
"Poética", Ana Cristina César
Quais são os 3 livros escritos por mulheres que te marcaram nos últimos tempos?
Vou citar livros que li este ano:
"Escute as feras", Nastassja Martin
"Temporada de Furacões", Fernanda Melchor
"Quarto 19", uma novela de Doris Lessing
Quais são os 3 livros escritos por mulheres que você não vai deixar de ler ainda em 2022?
Qualquer um da Annie Ernaux, nunca li nada dela. E também:
"É sempre a hora da nossa morte, amém", Mariana Salomão Carrara, (referência para um novo projeto)
"O último sábado de julho amanhece quieto", Silvana Tavano